Quando a vida imita o pior da arte.
- Frank Moreira
- 8 de nov. de 2016
- 5 min de leitura
Interior. Pouca luz e uma sombra caraterística do ambiente. Uma pessoa, um padre e a privacidade que o momento da confissão proporcionam. Entre pecados comuns e outros problemas cotidianos que poderiam ser compartilhados, uma revelação:
- Padre, estou com algo me afligindo o peito. Sei de uma coisa que pode prejudicar muita gente. Uma grande conspiração que vai movimentar milhões e fará todo o país perder a fé em um processo tão aguardado. O que faço, Padre?
- Conte-me mais, minha filha. Me dê os detalhes para eu entender o tamanho de seu problema.
- São uns conhecidos, Padre. Eles estão armando um golpe incrível para vender respostas e aprovações em um dos mais concorridos processos seletivos que o país tem. O ENEM.
- Como assim? Um golpe? O que mais você sabe, minha filha?
- Olha, sei que irão se utilizar de sistemas informatizados de última geração, pontos comunicadores invisíveis e quase indetectáveis aos sistemas de segurança e tecnologia de comunicação tão eficiente que permitirá que tudo aconteça em tempo real. O que eu faço com essa informação, Padre.
- Não há outra coisa a fazer a não ser você ficar em paz consigo mesma, minha filha. É preciso que você tire esse peso do seu peito e procure as autoridades e eles saberão o que fazer. Pense que se você não fizer nada estará contribuindo com essa quadrilha que irá prejudicar muita gente que você nem conhece. Lembre-se de fazer o bem, não importa a quem.
- Entendo, Padre. Entendo. Farei isso. Vou procurar a polícia e contar tudo. Espero que eles possam nos ajudar, já que o tempo é tão curto. São somente duas semanas para o evento e não sei se eles terão tempo hábil para fazer algo dentro do que a lei permite. Até mais, Padre, agradeço os conselhos.
- Er.... minha filha, espere um minuto. Antes de ir, cinco minutinhos ajoelhada oferecendo orações ao Nosso Senhor. Pelos outros pecados. É protocolo, entende?
A polícia é procurada e a jovem vira uma testemunha ao contar a história de conhecidos que querem fraudar o maior evento de avaliação de candidatos paras as instituições de ensino do país. Um caos pode ser instaurado caso as autoridades não consigam desmantelar essa quadrilha em tempo e com isso o país inteiro iria se manifestar, como tem sido hoje em dia. Isso não pode acontecer. Quinze dias é o prazo para as provas e há muito a ser feito. Que se monte uma equipe de elite especializada em investigação sigilosa e em monitoramento de suspeitos. Uma força-tarefa.
Sim, sou péssimo em escrever roteiros, mas podemos concordar que essa introdução poderia ser bem um trailer de uma produção mais bem elaborada do que eu consegui fazer parecer, correto? A fórmula está perfeita. Uma gangue do mal, um plano diabólico, uma testemunha que fala demais, um padre fazendo o bem. Poderia ser um blockbuster se Dan Brown tivesse escrito.
Esse evento todo, que em vários lugares do mundo poderia ter proporções agigantadas pela mídia e pelos órgãos independentes que se sentissem afetados, no Brasil, é chamado de mais um "fim de semana". Não que o fato não tenha sido noticiado e que a polícia não tenha agido, mas é que tudo parece surrealmente bem resolvido, com toda a perícia e eficiência da polícia, sem que houvesse prejuízo algum a ninguém e ainda terminando do jeito que o brasileiro gosta: nas redes sociais, com perfis divulgados e vários discursos de ódio sendo compartilhados. Uma das meninas que "comprou" o resultado do Enem é de Minas Gerais e teve seu rostinho divulgado em todos os jornais do país, inclusive com um rápido e eficiente estudo do seu passado, que permitiu até associar o seu comportamento desonesto com o pedido de #foradilma, meses atrás. Mais uma coisa que o brasileiro gosta, a possibilidade de associar um comportamento errado a outro, como se por ter sido contra ou a favor do impeachment da ex-presidenta alguém seria mais ou menos honesto do que os de opinião contrária.
Se você quiser entender detalhadamente o que aconteceu, o Fantástico do último domingo foi muito feliz na reportagem apresentada e, por mais que sempre fiquemos com aquela sensação de um estranho envolvimento entre a polícia e as mídias jornalísticas, entendo que no final não há nenhum bem em não termos acesso aos fatos. Se quiser, veja o vídeo da reportagem:
O esquema da quadrilha era simples e realmente de grande inspiração em todos os filmes de espionagem que vemos por aí. Grampos, pontos eletrônicos, sinais de confirmação e muita informação passada de forma imperceptível pela quadrilha de especialistas. As respostas eram dadas de forma bastante clara e com isso o candidato certamente teria um desempenho fenomenal, garantindo aí o acesso às mais importantes universidades do país sem que houvesse a justa disputa que o evento propõe.
No norte do país mais um caso que certamente ainda vai dar uma grande repercussão. Várias pessoas que já haviam apresentado resultados suspeitos em edições anteriores do ENEM estavam sendo investigadas e por isso foram monitoradas de forma especial pela polícia. Em uma das prisões realizadas, um homem apontou que já sabia o tema da redação do ENEM antes mesmo do início da prova e com ele foi encontrado um texto que tinha como tema a "Intolerância Religiosa", exatamente o mesmo assunto proposto pelo ENEM horas depois.
No Ceará, quatro prisões: Em Fortaleza um candidato preso antes da prova já tinha a redação pronta, aguardando somente ser copiada para o cartão-resposta. Em Independência, uma candidata foi presa com um segundo celular que continha o gabarito e em Cedro um homem foi flagrado com um ponto eletrônico no ouvido. Além desses uma mulher foi preza em Juazeiro com o gabarito da prova escondido na roupa.

Dá para ficar aqui a manhã toda falando sobre os casos descobertos e sobre como a polícia agiu em cima deles, mas o que nos faz pensar não são esses casos e sim aqueles que não foram descobertos. Dá uma preguiça de imaginar que uma grande quantidade de candidatos conseguirão suas vagas em instituições de ensino de muita qualidade por terem "encomendado" o resultado e isso tudo em detrimento do sucesso daqueles que realmente suaram a camisa para aprender e poder fazer o seu melhor.
É inevitável que haja perda de credibilidade no processo e que uma consequência ainda pior seja percebida, pois alguns daqueles mais jovens que ainda irão participar do processo no futuro acabarão por concluir que é mais simples encurtar o caminho para a obtenção de suas oportunidades do que efetivamente lutar por elas, como imaginamos que deva acontecer com todos. Esse processo faz parte da construção moral e social de um jovem e perder essa referência de "igualdade de condições" de disputa (se é que isso existe de verdade), não ajudará em nada nesse molde comportamental.
Espero muito que o ENEM 2016 não seja colocado em xeque no ponto de ser necessário alguma intervenção da justiça, anulamento ou qualquer outra medida que causaria um transtorno sem medida para os envolvidos. temos mais um ano até que o ENEM do ano que vem seja realizado e com isso mais um ano para que as quadrilhas especializadas em fraudar esse tipo de evento possam desenvolver novos métodos para serem utilizados. Torcemos mais ainda para que seja um ano bem utilizado pela polícia e pelo Governo Federal para se precaverem com medidas ainda mais eficazes contra essa prática.
Pelo bem do aluno, do professor e da família brasileira.
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