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Cultura de Zé Carioca: a cara do esporte brasileiro

  • Foto do escritor: Frank Moreira
    Frank Moreira
  • 15 de out. de 2016
  • 7 min de leitura

Ano de 1993, Belo Horizonte, Mineirão. Rodolfo Rodriguez, goleiro uruguaio que atuava pelo Bahia fez uma defesa simples em um jogo no qual seu time estava sendo massacrado pelo dono da casa, Cruzeiro. Ao pegar a bola, Rodolfo esbravejou, gesticulou e reclamou enquanto deixava a bola no chão ao lado do seu corpo e quando se voltou para pegá-la ela não estava mais lá. Ronaldinho, ainda não conhecido como Fenômeno como veio a ser depois, foi mais esperto e pegou a bola que estava na posse do goleiro, fez o gol e o lance se transformou em um símbolo da malandragem do atacante. (VEJA O VÍDEO)


Exatos vinte anos depois, Independência. Em uma paralisação do jogo entre Atlético MG e São Paulo, pela Copa Libertadores, Ronaldinho Gaúcho aproveitou uma parada no jogo e foi até o gol do adversário, pedindo um pouco de água para o goleiro tricolor Rogério Ceni. Um gole aqui, uma lavada de rosto ali, uma água na cabeça acolá e de repente um pique para a linha de fundo para receber um lateral cobrado pelo companheiro. Ronaldinho Gaúcho estava absolutamente sozinho com o goleiro do São Paulo e construiu a jogada de um gol importantíssimo para a classificação atleticana na competição na qual conseguiu o maior título da sua história. (VEJA O VÍDEO)


Cinquenta e quatro anos atrás, Chile, Copa do Mundo. O Brasil enfrentava a Espanha em um jogo extremamente difícil quando Nilton Santos comete um pênalti e, percebendo a distância do árbitro para o local onde o lance ocorre, dá um passo gigantesco para fora da área. A encenação funciona, somente uma falta fora da área é marcada e o Brasil vence o jogo por 2x1. (VEJA O VÍDEO)


Copa do mundo de 2002, Ulsan, Coréia do Sul. Um jogador turco dá um bico na bola em direção de Rivaldo que se preparava para bater o escanteio. A bola bate no joelho de Rivaldo que finge que foi atingido no rosto. A arbitragem cai na "malandragem" do brasileiro e expulsa o jogador turco, ajudando o Brasil a conseguir uma vitória importantíssima justamente em sua estreia naquela competição. Um mês depois o Brasil levantava o caneco de pentacampeão do mundo. (VEJA O VÍDEO)


Temporada 2012/13, Champions League. Quando o Shaktar Donetsk enfrentou o Nordsjaelland o atacante brasileiro Luiz Adriano se aproveitou de um lance no qual a bola deveria ser devolvida para fins de fair play, avançou e marcou o gol contra o adversário. Dentro do jogo o gol foi validado normalmente e o Shaktar venceu a partida, apesar da enorme confusão que se instaurou no gramado. A UEFA analisou o lance e puniu o brasileiro após o jogo. (VEJA O VÍDEO)


Foram cinco os casos que usei do futebol como exemplo e se eu precisasse de mais cinco, ou dez, ou cem, eu conseguiria facilmente. O futebol brasileiro se alimenta desse tipo de malandragem, desse tipo de comportamento oportunista e teatral. Nossos atletas são criados assim desde sua formação de base, quando são categoricamente incentivados (ensinados?) pelos treinadores a praticar o anti-jogo, a simularem faltas e a fazerem o máximo de cera que conseguirem. Beatriz Cabral, boa amiga e leitora do blog, me disse na semana que passou que essa é a "cultura do Zé Carioca" no nosso esporte e precisamos concordar em 100% com ela, pois o que nossos clubes, dirigentes, jogadores e torcedores querem ao final é somente ter a certeza de que obtiveram a vantagem que queriam.


Quando se discute sobre a honestidade de um atleta dentro do seu esporte, não estamos somente pensando no aspecto esportivo do problema, que por si só já seria extremamente importante. Ao percebermos que um esportista simula uma falta, comemora descaradamente um ponto após a bola resvalar em seu bloqueio, pisa em uma marca no saibro ou adultera algum tipo de equipamento que lhe é necessário, podemos concluir que esse é um corrupto em potencial e que outros tipos de adulteração ou manipulação de resultados podem perfeitamente estar em seu currículo. Sim, entendo que a visão pode ser dramática mas é, ao pé da letra, perfeitamente plausível.


Fonte: www.ligamagic.com.br


A discussão está em torno do conceito da moralidade ou da legalidade das ações. O que não é proibido é, então, legal, e deve ser praticado? Ou mesmo que haja suporte legal para a execução de uma ação deve-se respeitar um limite ético quando da tomada de uma decisão dessa natureza. A tradição cultural joga contra nós, pois o brasileiro (sem generalizar) tem orgulho em comemorar suas espertezas e suas saídas alternativas para seus problemas. Seja no cafezinho ao guarda de trânsito ou no arredondamento em sua prestação de contas, na hora de dar um passo para fora da área ou de se aproveitar da boa vontade do adversário, louvamos o errado. Ronaldinhos e Rivaldos são rotulados de gênios dentro do esporte muito pela capacidade em se dissimular, enganar e manipular o esporte. O delírio das torcidas após o ato de imoralidade é o reflexo daquilo que o cidadão está acostumado a exaltar, pois ele é inundado em seu dia a dia com as mais repetitivas formas de se levar vantagem. Esse é o momento em que o torcedor de um esporte chega mais perto de seu ídolo, pois vê nele a esperteza de suas ações corriqueiras e a desconstrução da imortalidade que costuma emanar um ídolo. "Somos iguais. Pensamos igual. Eu faria o mesmo. Ele é como eu. Eu sou como ele."


Em 1976 foi divulgado um vídeo promocional de uma marca de cigarros no qual o meia Gérson, um dos maiores jogadores brasileiros de todos os tempos e titular na conquista do tri mundial em 70, dizia que o "importante era levar vantagem em tudo":


"Por que pagar mais caro se o Vila me dá tudo aquilo que eu quero de um bom cigarro? Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também, leve Vila Rica!."


Nascia ali a Lei de Gérson, exclusividade da cultura brasileira e que prega o princípio de que pessoas ou empresas brasileiras devem buscar obter vantagem de forma indiscriminada, sem se preocupar em ferir questões éticas ou princípios morais.


Veja o vídeo do nascimento da Lei de Gérson (boa lembrança da bela Karol Moreira):



Publiquei dias atrás sobre um caso no futebol italiano sobre a experiência de se dar um reforço positivo aos jogadores de futebol em caso de bom comportamento. Um cartão verde que simbolizaria a medida adequada de fair play para que o bom exemplo seja devidamente difundido e, preferencialmente, seguido.


Caminhamos na contramão dessa iniciativa, pois aqui no Brasil estamos sempre trabalhando com uma ideia de reforço negativo às ações de nossos atletas (esse ponto foi bem lembrado pelo leitor Lucas Fonseca Lage). Punições, restrições e censuras só resultam no enrustimento do comportamento ético e no consequente fortalecimento da cultura da malandragem. No futebol, por exemplo, nossos árbitros estão instruídos a darem cartões amarelos para qualquer tipo de reclamação minimamente fora do normal, com a finalidade de intimidar e impedir que um atleta de futebol tenha condições de argumentar durante a realização de um jogo. Não se incentiva o diálogo e o estudo do jogo e sim somente o desenvolvimento de novas formas de se retardá-lo e de se influenciar nas decisões de um árbitro.


O craque holandês Clarence Seedorf jogou no Brasil defendendo as cores do Botafogo e sempre que tinha oportunidade se manifestava contra a postura dos jogadores brasileiros durante os jogos. Segundo Seedorf "o jogador simular que foi atingido para conseguir uma falta era uma vergonha e só contribuía para atrapalhar ainda mais o trabalho dos árbitros". Na Europa os jogadores brasileiros já chegam rotulados de "piscineros", como se diz na Espanha, pois caem com qualquer toque e simulam pênaltis com uma frequência que irrita muito o público de lá. Muitos deles precisam de muito tempo para realmente conquistarem as torcidas de seus times e outros encerram as carreiras com essa fama negativa e são vaiados sistematicamente em todos os estádios que pisam.


De novo eu falo que nosso problema é cultural e o esporte é somente um reflexo disso. Enquanto o Brasil for o país do "jeitinho" e do "faz-me rir", teremos essa raiz de corrupção se espalhando. Os jovens vão continuar tendo como referências aqueles que vencem na vida mas que são desonestos nas pequenas coisas e constroem seu status de ídolo se utilizando de vitórias fajutas, esperteza e dissimulação. O brasileiro valoriza o famoso "espírito de Libertadores" e até a violência é relativizada quando queremos justificar as bizarrices que vemos por aqui.


"Roubado é mais gostoso", diremos, quando em nosso favor. "Uma vergonha, um roubo", quando em favor do coleguinha.


Vocês certamente já leram ou ouviram esse texto que conheci através de uma leitura em show da Ana Carolina. Se não tiveram a oportunidade, vale a pena entender como a coisa vem de berço e como é fácil ser assim. Assim como Elisa Lucinda disse, não adianta espernear, pois mais honesto a cada dia eu vou ficar. Só de sacanagem.


Só de sacanagem (Elisa Lucinda)


Meu coração está aos pulos!


Quantas vezes minha esperança será posta à prova?


Por quantas provas terá ela que passar? Tudo isso que está aí no ar, malas, cuecas que voam entupidas de dinheiro, do meu, do nosso dinheiro que reservamos duramente para educar os meninos mais pobres que nós, para cuidar gratuitamente da saúde deles e dos seus pais, esse dinheiro viaja na bagagem da impunidade e eu não posso mais.


Quantas vezes, meu amigo, meu rapaz, minha confiança vai ser posta à prova?


Quantas vezes minha esperança vai esperar no cais?


É certo que tempos difíceis existem para aperfeiçoar o aprendiz, mas não é certo que a mentira dos maus brasileiros venha quebrar no nosso nariz.


Meu coração está no escuro, a luz é simples, regada ao conselho simples de meu pai, minha mãe, minha avó e os justos que os precederam: "Não roubarás", "Devolva o lápis do coleguinha", "Esse apontador não é seu, minha filha". Ao invés disso, tanta coisa nojenta e torpe tenho tido que escutar.


Até habeas corpus preventivo, coisa da qual nunca tinha visto falar e sobre a qual minha pobre lógica ainda insiste: esse é o tipo de benefício que só ao culpado interessará. Pois bem, se mexeram comigo, com a velha e fiel fé do meu povo sofrido, então agora eu vou sacanear: mais honesta ainda vou ficar.


Só de sacanagem! Dirão: "Deixa de ser boba, desde Cabral que aqui todo mundo rouba" e vou dizer: "Não importa, será esse o meu carnaval, vou confiar mais e outra vez. Eu, meu irmão, meu filho e meus amigos, vamos pagar limpo a quem a gente deve e receber limpo do nosso freguês. Com o tempo a gente consegue ser livre, ético e o escambau."


Dirão: "É inútil, todo o mundo aqui é corrupto, desde o primeiro homem que veio de Portugal". Eu direi: Não admito, minha esperança é imortal.


Eu repito, ouviram? Imortal! Sei que não dá para mudar o começo mas, se a gente quiser, vai dar para mudar o final!

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